sábado, 11 de julho de 2009

O frio da alma




"...o homem andava de um lado para o outro na rua. Cabelos bagunçados, andar bruto e um olhar desfigurado carregados em sua face. A ação do tempo era também algo significativo em seu rosto, as linhas de expressão denotavam sua idade avançada e o seu leve curvar de ombros o peso de toda uma vida carregada nas costas. Ninguém se atrevia a pará-lo e perguntar o que havia acontecido ou se podia ajudar, de fato, naquele momento não era o mais recomendável a ser feito...
A leve garoa e a brisa gelada insistiam em incomodar todos naquela manhã de inverno. Muitos dos que passaram apressados, sequer notaram a presença daquele indivíduo e os que notaram não deram a devida importância para o mesmo. O discurso "o problema não é meu" foi algo que vagou por muitos ali, afinal, nada podiam fazer. Eu também não podia, mas me vi parado, hipnotizado pela figura no mínimo exótica de alguém que insistia em chamar minha atenção.
A certa altura, me peguei a ser embalado pelo ritmo compassado de seus passos de um lado para outro, algo desconexo e sem significados para alguns, mas com grande amplitude e significância para mim. Estes mesmos passos, soavam como batidas ocas dentro de mim, misturando-se com os meus batimentos cardíacos e em dado momento fundindo-se em um só.
Queria desvendar aquele mistério, queria sentir as mesmas sensações que ele sentia, queria viver seu personagem e atuar naquela vida que não me pertencia, mas como, se agora nem mesmo a minha vida sentia ter a autonomia de mudar?
Vi-me perdido em tempo e espaço, era como se não existisse mais nada ao meu redor. Os ruídos dos automóveis, trens e transeuntes que passavam se perderam em outras dimensões e devaneios meus; estava perdido em entender o que se passava, comigo e com aquele ser. Podia ouvir o grito de desespero que ecoava por dentro de seus pulmões e se perdiam na imensidão de seu inconsciente. Foi quando, um som mais forte ecoou com seu baque no chão, interrompendo seu ritmo e cessando a cena. Estava morto. Todos agora pararam, mas ninguém quis acudi-lo. Olhavam insólitos, um misto de terror, indignação e medo. Alguns tentavam achar explicações e diagnosticar o fato, outros olhavam para o céu e clamavam ajuda de algum lugar que não viria. O fato é que ninguém tinha o direito de fazer isso... nem mesmo eu que observei seus últimos momentos de vida e as últimas angústias afloradas em sua face.
Foi então que me dei conta do quanto às pessoas tentam se apossar das outras para minimizar suas culpas ou mesmo amenizar seus anseios. Vi o quanto tentei me apossar daquela situação. A angústia não era dele, mas sim minha... pois ela revive agora em mim.
A brisa fina e gélida me atinge como uma navalha afiada, um tapa na cara. O vento arrasta pelo chão, meio as pernas das pessoas que se encontram ali paradas em volta do corpo, um jornal de ontem que carrega a manchete: 'Frio atinge paulistas na manhã de terça-feira'. Pior que o frio do tempo, é frio das almas, é a frieza das pessoas, esta sim é capaz de atingir em cheio, de interromper, de parar, de fazer morrer."

Leôncio Fernandes


Um comentário:

  1. Identificação projetiva?

    E se as pessoas são frias, o importante é que mantenhamos a centelha dos nossos anseios sempre acesa no coração. Não podemos nos igualar a elas.

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